quarta-feira, 25 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DONA PINTA

DONA PINTA

Dona Pinta tinha um sonho: ser cantora de ópera, ser diva, uma Maria Callas. Na capoeira era apreciada pela plumagem macia e voz encantadora. Empoleirava-se nos degraus do galinheiro e abria o bico, estendia as asas. Era aplaudida com ovações. O galo andava embeiçado, mas Dona Pinta só queria saber da arte do Bel Canto.
Partiu, um dia, depois de encher a pança de milho, em direcção à cidade, os passos limitados. Nos olhos tinha a imagem de um grande teatro transbordante de rica gente, o maestro atirando-lhe um discreto cumprimento, enamorado. Apresentou-se com uma vénia, na tarde de audições. Cantou com sentimento, de peito a arfar, e foi aceite como promessa de talento. Dona Pinta nem queria acreditar, quando as cortinas se abriram para o público e se viu disfarçada de Dama das Camélias, representando luxúria e tuberculose. De penas enfeitadas, à falta de plumas, o pescoço esgalgado subindo e descendo sobre o peito, a cabeça inclinada sobre o lado direito como um pato que aguarda a matança, os cacarejos ecoaram pelo teatro perante olhos esbugalhados. Dona Pinta erguia os seus, redondos e mortiços, abria as asas cantando fatalidades, a crista vermelha lembrando o sangue da Dama. E foi então que algo sucedeu, muito contrário às suas expectativas. O público ergueu-se e o aplauso que esperava transformou-se numa gargalhada terrível, demoníaca, endemoninhada. Houve gente que caiu até dos assentos.
Dona Pinta escorreu lágrimas discretas, fechou as asas e caminhou para a saída do Teatro. Nunca voltou à capoeira natal. Dizem que alguém do público a achara uma boa promessa para o jantar desse dia.