sexta-feira, 15 de maio de 2009

O REI DA SELVA

O REI DA SELVA

Há muito tempo, certo dia de Estio, no centro da savana Africana, viveu um rei. A corte animal bendisse o seu nascimento, abençoou a cria de Sua Majestade, predisse um futuro brilhante. O futuro rei, de juba incandescente, cresceu com os dons de beleza, voz, pujança. Apesar de abençoado em tudo o que podia desejar, a sua alma era atormentada pelo medo. Temia o dia em que viria a reinar, em que a corte gritaria: O REI MORREU, VIVA O REI! Mas o futuro incerto faz-se sempre acompanhar pela certeza do Tempo, e o dia temido chegou, nem cedo de mais, nem tarde de mais, e a corte gritou o grito esperado. A sua juba fez-se coroa, a pata ergueu-se para comandar. No acto, contudo, as garras retraíram-se, tremeu-lhe o membro, o rugido desfez-se, e assim ficou, desnudado pelos olhos dos outros animais que esperavam liderança como quem espera a manhã que vem iluminar a noite. Ora um sapo, de ampla voz, que vivia num charco ali próximo, abeirou-se do rei e coaxou algo que mais pareceu um arroto: Se me permite Vossa Majestade, bem vejo que a voz lhe treme quando quer falar, que os vossos desejos se dissolvem na língua, que tendes dificuldade em mostrar o vosso coração de líder. Deixai que fale por vós como Aarão falou as vontades de Moisés. Toda a juba do rei se iluminou, os dentes mostraram-se num sorriso, e logo o sapo se empoleirou entre as cerdas cor de fogo. Foi assim que o rei da selva começou a reinar pela voz do sapo. Pela voz, só? Pela vontade, também. O sapo reinou caprichos, fez das competências de um líder mesquinhez, alimentou-se de reais repastos. A corte, desorientada, em breve se desmantelou, como um castelo de areia há muito sem água. O rei da selva era agora rei de nada, nem mesmo de si próprio.

sábado, 2 de maio de 2009

VENENO DE RATO

VENENO DE RATO
O rato envenenado caiu redondo, as quatro patas viradas para o céu. As costas já não sentiam o frio do chão. Ficou assim, o seu corpo minúsculo apodrecendo no azulejo preto e branco, desfazendo-se com lentidão, até já pouco restar da sua fisionomia de rato. Veio o dono da casa a descobri-lo por baixo do frigorífico. Apanhou-o com a pá e deitou-o no lixo, um rato entre os milhares, milhões, biliões de ratos mortos desde o princípio do mundo. O precioso veneno, sempre a jeito no armário das bolachas, matava com regularidade. O homem espreitou a lata e sorriu ao seu conteúdo. O dia seguiu-se em silêncio de nojo. Os pássaros abafaram o pio perante a passagem da foice, não fosse algum garoto usar a fisga. Os cães não ladraram, a esses a morte cheira, mesmo distante. Os gatos cederam ao sono, sem ratos a quem perseguir. Chegou a noite e uma chiadeira agitou o silêncio propício à janta. O homem entrou na cozinha e sentou-se em frente ao prato. Mergulhou a colher no tacho e resmungou ‘Parece-me que ainda há muitos para matar’. A chiadeira aumentou parecendo gente apupando na arena. Irritado, o homem sorveu da colher, enquanto mirava a lata de raticida. Os olhos arregalaram-se perante a tampa aberta, as unhas cravaram-se na toalha de mesa. Foi a cadeira a primeira a ceder sob o seu peso morto. Caiu de costas, arrastando a louça, as mãos e as pernas buscando o céu. Assim ficou, o seu corpo apodrecendo, desfazendo-se com lentidão até pouco restar da fisionomia humana. O silêncio voltou. Não só na sua casa, também nas outras, nas ruas, no mundo inteiro.