sexta-feira, 17 de abril de 2009

A LAGARTA BICÉFALA

A LAGARTA BICÉFALA

Havia em certo jardim uma lagarta tão longa que todos os animais abriam a boca de espanto à sua passagem. Era tão comprida que ao estender-se bem estendida, com a cabeça para um lado e a cauda para o outro entrava e saia simultaneamente do jardim que habitava. Mais do que o seu comprimento, que por si só já era de admirar, a estranheza da lagarta residia no facto de ter duas cabeças. Ou seja, quando há pouco a descrevi como tendo cabeça e cauda em cada uma das suas pontas, a verdade é que a cauda era também a cabeça. Ora se diz o ditado que duas cabeças pensam melhor do que uma, tal não era o caso da lagarta bicéfala. As duas cabeças nunca estavam de acordo. Se uma queria caminhar, a outra queria descansar. Se uma queria comer, a outra queria dormir. Se uma sonhava vir a ser borboleta, a outra desejava ser lagarta para sempre.
O mocho julgou ter a solução para o problema. Corte-se ao meio a lagarta, disse, e fica uma cabeça para cada lado. Mas como cada cabeça tinha o seu pensar, uma achou boa a solução e a outra achou mal. Foi-se a votos. A lagarta contou os anéis de cada metade do seu corpo, à metade com mais anéis caberia a decisão. Não sabia, porém, que duas metades de lagarta possuem o mesmo número de anéis. Se uma ficou satisfeita com o empate, e outra ficou de mau humor. Puseram-se a discutir, numa daquelas discussões com tantas palavras quanto o número de anéis que tinham contado. Nisto, aproximou-se o corvo, que de tanto observar a lagarta achou que se abrisse bem o bico e abocanhasse uma das cabeças, conseguia engoli-la toda, enrolando-a bem enrolada dentro do seu estômago. Foi a primeira vez que as duas metades concordaram. Nenhuma queria morrer. Não tiveram tempo de manifestar o seu acordo, porque o corvo abocanhou uma ponta e terminou na outra após longo repasto. No jardim soou um arroto, e um suspiro de satisfação.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

A MORTE DA SARDANISCA

A MORTE DA SARDANISCA

Tempo de Estio. A vida é fácil, doce, melancólica como o Sol que desce. A pedra aquece até queimar os dedos, dormentes, que sentem vivo o minério. A pele rasga-se, abre-se, dá-se ao ar que penetra morno. Escutam os ouvidos para além do próximo. Toda a terra murmura em luxúria. Que odor emana das flores, tão forte agora, tão discreto outrora…
A sardanisca estica o pescoço, levanta a cabeça ao céu de um azul tão denso como um tecto. O espaço sideral desapareceu, engolido pela luz. Levanta a cabeça, os sentidos a palpitar, mantendo-se imóvel como se ela própria se tivesse tornado parte de um quadro estagnado. As abelhas colhem pólen, frenéticas, as formigas formam uma fila interminável de migalhas. As outras sardaniscas escondem-se à mais leve vibração. Encontram orifícios frescos no muro de pedra, multiplicando-se em afazeres diários. Ela não. Os dedinhos esticados, já tão quente a pele cinzenta ainda por manchar. Aquieta-se porque assim lho pede o Sol. As joaninhas pintalgam as flores, vorazes de pulgões. As lagartas escorrem das folhas que comem. Aquieta-se a sardanisca porque assim lho pede o Verão, com a cauda em curva perfeita contra a pedra que arde. Toda tocada pelo ar, sente prazer na imobilidade e no ópio das flores. Os pardais cantam ósculos, dançam, devoram. Os ratos juntam relíquias, enchem as tocas. As borboletas dão asas às flores. A sardanisca aquieta-se porque assim lho pede a Vida. E o doce perfume de Estio passa, também ele voraz do tempo que engole. Caem folhas de Outono em chamas, cobrem o mundo de ontem. Na pedra fria aos primeiros raios da manhã, a sardanisca aquieta-se porque assim lho pede a Morte.