segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A PONTE

A PONTE

Lado a lado como duas mãos do mesmo ser, o Céu e o Inferno estiveram separados por um fosso profundo desde o início dos tempos. A fim de discutir o destino das almas, o Diabo suportava o calvário a caminho dos domínios de Deus, e este submetia-se às tentações demoníacas para visitar o Inferno.
A eternidade, estendendo-se a igual distância tanto para o passado como para o futuro, começou a pesar sobre a temperança das duas divindades, o cansaço a sobrepor-se à justeza das decisões, a cedência a tomar conta do destino do Homem. Foi então que um anjo teve a ideia de construir uma ponte para que Deus e o Diabo pudessem visitar-se sem percorrer o caminho das almas. Uma ponte entre o Céu e o Inferno. Com todos os anjos trabalhando e todos os demónios tentando ao descanso, a ponte fez-se. Foi Deus quem deu o primeiro passo sobre a calçada branca com desenhos azuis representando anjos e demónios em alegre camaradagem. Do outro lado, o Diabo esperava-o sorrindo, a mão estendida. A ponte parecia servir maravilhosamente o seu propósito, mas ao fim de algum tempo os anjos que trabalhavam nos arquivos celestiais começaram a notar que no Céu se passeavam almas não registadas, bem como a ausência de outras aquando da chamada diária. Aconteceu o que de outro modo não podia. Sem portas ou portões, sem muros circundantes, as almas de ambos os lados começaram a misturar-se, o Céu e o Inferno unindo-se através da ponte divina, ou maldita. Não foi pequeno o espanto de Deus e o Diabo vendo que tudo se dava em harmonia, sem que os dois mundos parecessem contaminados. Na verdade, havia um certo espírito de felicidade, pois almas separadas pela morte encontraram-se finalmente, iniciaram-se romances, reataram-se amizades.
E veio-lhes à boca a pergunta inevitável, aquela que lhes tirava o sono à noite, que em tantos encontros ficara por pronunciar, pronta a saltar do peito a palavra dita. Que sentido há em separar as almas, uma vez que não existe mais a separação entre o Céu e o Inferno? Atrás dessa, veio logo outra pergunta, ninguém soube se foi Deus ou o Diabo a fazê-la primeiro: E se não existir clara distinção entre o Bem e o Mal? E enquanto discutiam o assunto, no meio da ponte, no território neutro que se alastrava como um líquido, viam passar as almas para quem essa distinção nunca tinha havido, viam os abraços, as promessas, os sonhos, as memórias. A vida invadia os domínios da morte, e a vida não se contém.
Nota: Num dos seus programas, José Hermano Saraiva disse mais ou menos isto: Se se contruísse uma ponte entre o Céu e o Inferno deixaria de haver Céu e deixaria de haver Inferno. Essa ideia perseguiu-me até se transformar em história. Aqui a deixo, juntamente com a minha admiração pelo Homem que me devolve o país sempre que narra Portugal.