terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A BARRIGA DO PAI NATAL



Como desce o Pai Natal pela chaminé? De casa em casa, a sua barriga cresce com os doces de Natal. Cresce como um balão e fica mais pesada, ao mesmo tempo que a boca se abre num grande sorriso. Como são altas e estreitas as chaminés! Felizmente, o menino Jesus - quem mais senão ele - puxando uma corda, feita com as barbas de Deus, laça a grande barriga do Pai Natal e fá-lo descer, leve como uma estrela, até à árvore de Natal, bem junto da lareira. E, se pesado desce o Pai Natal, mais pesado sobe, ainda!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

É NATAL PARA O PAI NATAL!

É NATAL PARA O PAI NATAL!


Todas os adultos sabem que é o Pai Natal quem anualmente leva os presentes a casa dos meninos. Trabalho que muito facilita a vida dos pais, pois não têm que sucumbir à demencial azáfama das vésperas natalícias. Apenas de aguardar pela meia-noite, confortavelmente instalados, com os respectivos pequenos ao colo.

Mas certo dia de Natal, há muito tempo, todos os meninos do mundo correram o risco de não receber nem um rebuçado. E porquê? Simples. O Pai Natal caiu de cama com uma pneumonia. O primeiro espirro aconteceu durante um nevão interminável. O Inverno estava a ser muito mais frio do que o costume. Apesar de estar habituado à neve da Lapónia, o Pai Natal resolveu sair sem casaco, sem botas, e imaginem!, apenas de chinelos. As renas que puxam o trenó dos presentes estavam a ficar com as patas enterradas na neve. Em breve, todas elas estariam debaixo da espessa brancura, se não recolhessem ao estábulo:
-- Aaaaaaaaaaaatchimmmmm! – espirrou o Pai Natal – Oh, que gelo! Nunca se viu Inverno assim na Lapónia, e eu já vi muitos. Milhares deles.
-- Velho tolo! – guinchou o esquilo que vivia na árvore do quintal – Por teres passado por tantos devias saber que não se sai à rua sem casaco, sem botas, e ainda por cima de chinelos. Vais constipar-te. E depois quem é que entrega os presentes aos meninos? Toma, come uma noz. Se não fizer bem aos espirros, pelo menos deixa os dentes brancos e lustrosos.
Nada. O Pai Natal, apesar de muito sábio, deixou-se arrefecer e dois dias depois tiritava de febre na caminha de abeto que mal aguentava com o seu peso.
-- Ora, estamos no dia 2... hummmmm, não, o Sr. Pai Natal não estará curado a tempo do dia de Natal. Não senhor. Aliás, é muito pouco recomendável que se ponha para aí a andar de trenó com o frio da noite. Nem pensar nisso. Cama!
O médico foi peremptório. Mal humorado, o Pai Natal tapou a cabeça com os cobertores.
Um milagre estava próximo. Os duendes fazedores de brinquedos ouviram tudo atrás da porta. Bem se sabe que é feio escutar atrás das portas. Enfim, foi por uma boa causa. Puseram-se todos a falar muito depressa em duendês e tiveram uma ideia. Visto não ser possível entregar os presentes nesse ano, pelo menos a tempo, não seria por causa da pneumonia do Pai Natal que os meninos ficariam sem presentes.
-- Euq sodot meugep me sipál e lepap – que em duendês quer dizer: Que todos peguem em lápis e papel.
As mãos mágicas e pequeninas começaram a escrever longas cartas endereçadas às casas de todos os meninos do mundo. Apesar de serem minúsculos, os duendes sabiam todas as línguas do Homem e todas as línguas dos animais. Não era tarefa difícil.
“Este ano, o Pai Natal não poderá entregar os presentes. Apanhou uma grandessíssima pneumonia. Por essa razão, os duendes da Lapónia fazem um pedido: cada menino e cada adulto deverá fazer ou comprar uma pequena prenda. Uma só. No dia de Natal todos trocarão de prendas. É muito fácil. Quem fizer batota (esperar uma prenda sem dar nada em troca) será castigado. Fica com o nariz congelado o ano inteiro. É muito perigoso, um nariz congelado parte facilmente. Ninguém, com certeza, gostará de andar por aí sem nariz depois de ter ido contra uma porta. Com os melhores cumprimentos.
So sedneud ad Ainópal”

Nessa noite todas as renas do Pai Natal se puseram a caminho, guiadas pela sombra das cegonhas da Lapónia. Percorreram todos os países do mundo e deixaram uma carta em cada chaminé. Não se enganaram numa morada sequer! Cada pessoa pôde ler na sua língua respectiva. Todas as cabeças se puseram a imaginar presentes, de todas as mãos saíram lembranças. No dia de Natal, o Pai Natal deitou o nariz fora da janela e sentiu-se muito melhor. Qual não foi o seu espanto quando deu pela presença de um pequeno embrulho atado com azevinho:
-- Que engraçado! Tem o tamanho de uma noz...
Pegou com cuidado no cartão de letras douradas e leu com um sorriso de orelha a orelha “Para o Pai Natal, com desejos de melhoras e dentes bonitos. Feliz Natal. Esquilo”.
-- Ora essa, é a primeira vez que recebo uma prenda! Este ano, até para mim é Natal!

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DONA PINTA

DONA PINTA

Dona Pinta tinha um sonho: ser cantora de ópera, ser diva, uma Maria Callas. Na capoeira era apreciada pela plumagem macia e voz encantadora. Empoleirava-se nos degraus do galinheiro e abria o bico, estendia as asas. Era aplaudida com ovações. O galo andava embeiçado, mas Dona Pinta só queria saber da arte do Bel Canto.
Partiu, um dia, depois de encher a pança de milho, em direcção à cidade, os passos limitados. Nos olhos tinha a imagem de um grande teatro transbordante de rica gente, o maestro atirando-lhe um discreto cumprimento, enamorado. Apresentou-se com uma vénia, na tarde de audições. Cantou com sentimento, de peito a arfar, e foi aceite como promessa de talento. Dona Pinta nem queria acreditar, quando as cortinas se abriram para o público e se viu disfarçada de Dama das Camélias, representando luxúria e tuberculose. De penas enfeitadas, à falta de plumas, o pescoço esgalgado subindo e descendo sobre o peito, a cabeça inclinada sobre o lado direito como um pato que aguarda a matança, os cacarejos ecoaram pelo teatro perante olhos esbugalhados. Dona Pinta erguia os seus, redondos e mortiços, abria as asas cantando fatalidades, a crista vermelha lembrando o sangue da Dama. E foi então que algo sucedeu, muito contrário às suas expectativas. O público ergueu-se e o aplauso que esperava transformou-se numa gargalhada terrível, demoníaca, endemoninhada. Houve gente que caiu até dos assentos.
Dona Pinta escorreu lágrimas discretas, fechou as asas e caminhou para a saída do Teatro. Nunca voltou à capoeira natal. Dizem que alguém do público a achara uma boa promessa para o jantar desse dia.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O DUENDE MALDISPOSTO


O DUENDE MALDISPOSTO

No coração da floresta vivia um duende que se distinguia entre os seus pela raridade do seu tamanho. Era um duende pequeno, mínimo, baixo, de ventre redondo e pernas finas. Era tão pequeno, tão ínfimo, tão despercebido, que podia viver espaçosamente dentro de um morango. A sua vida era doce e serena, sorvendo, entre cada sesta, o sumo açucarado e vermelho do fruto. Vivia sozinho, pois nenhum outro duende poderia partilhar com ele uma casa de tamanho tão modesto. Ainda assim, ou talvez por isso, achava na sua vida uma perfeição que se dispunha a manter lutando contra qualquer mudança que a vida trouxesse. Tudo dentro e à volta da sua casa morango estava sempre na mesma posição. E vigiava cada piar, cada rastejar, cada bater de asas, para que assim fosse. Mais do que vigiar, fazia má cara a qualquer bicho que se aproximasse ainda que viesse por bem.
Um dia, chegou uma Joaninha a voar, a sua carapaça primaveril luzindo ao sol. A Joaninha olhou para o morango e disse: “Ah, que lindo morango! É vermelho com pintas negras como a minha carapaça. É doce e tem duas janelas e uma porta.” E, dito isto, logo se pôs a bater à dita porta na esperança de encontrá-lo desabitado e de ali fazer o seu lar. Ao contrário do que esperava, porém, saiu de lá de dentro a cara má do duende:”Não quero nada, não compro nada, não vendo nada, nem preciso de ninguém”, e fechou a porta. A Joaninha sacudiu as antenas com desagrado e pôs-se a olhar à volta. Um sorriso de satisfação lhe invadiu o rosto quando reparou que mesmo por cima da casa do duende havia outro morango. Bom, talvez não tão vermelho, talvez não tão doce, sem janelas nem porta, mas que serviria perfeitamente. A Joaninha começou a trabalhar com muito afinco e foi fazendo do seu morango um lar maravilhoso, escolhendo pequenas folhas verdes para as cortinas e pétalas de flor para servirem de toldo.
Enquanto a Joaninha embelezava a casa, o duende maldisposto espiava cada um dos seus passos e, a cada voo, a cada mudança, lamentava-se inconsolavelmente: “Nunca mais nada será igual, nunca mais, nunca mais. A minha linda casa, tão sossegada, tão isolada, que infeliz que eu sou.” Por seu lado, a Joaninha, no ardor do seu trabalho, não deixava de apurar as antenas e escutar os queixumes do duende. Com boa vontade e cara alegre, deixava-lhe à porta pequenos presentes, como grãos de pólen, pevides de maçã, gotas de água. Tudo em nome do espírito de boa vizinhança. Mas a tudo isto o duende fazia cara feia e chegou mesmo a ir a casa da Joaninha para tirar satisfações. Ora, trazida pelos ventos da mudança, passou a voar uma abelha a caminho da colmeia. Vendo a Joaninha de antenas baixas e o duende com cara de poucos amigos, salvou a situação com um convite: “Sra. D. Joaninha, fique sabendo que para má vizinhança já basta a Morte. Porque não vem até à nossa colmeia que tem um favo desocupado e passa a alegrar-nos dias com as suas cores?” Convite feito, convite aceite. Levantaram voo e desapareceram no céu para alívio do duende, que satisfeito consigo próprio e com o destino entrou no seu morango e fechou a porta. A mudança é algo que vem por bem ou por mal, mas sobretudo na sua essência transformadora é o fenómeno mais certo da natureza. Ao lamber a parede da sua casa, em busca de doçura e conforto, o duende notou pela primeira vez um sabor a fel, com um qualquer tempero de podridão. A casa morango tinha começado a decompor-se. Então, soluços infelizes do duende soaram em todos cantos do bosque desatento. Ninguém, nem mesmo a Joaninha que vivia agora longe e feliz, lhe veio acalmar o choro.

domingo, 6 de setembro de 2009

domingo, 16 de agosto de 2009

sexta-feira, 31 de julho de 2009

O GALO METEOROLÓGICO

O GALO METEOROLÓGICO

Era meteorológico o galo da casa, cambiando entre azul vivo quando brilhava o sol e rosa pálido quando vinham as chuvas. A sua cor seguia os caprichos da meteorologia, ao anunciar e seguir o boletim. Outros da casa seguiam o galo que obedecia ao tempo.
Um dia, o deus da meteorologia desceu à casa e disse-lhe: “Dispenso-te dos teus afazeres, galo, pois com tantos e modernos métodos de previsão não preciso mais de ti”. Surgiu a dúvida no espírito do galo, sereno até então, sobre que cor assumir. Mas, logo se sentiu salvo pela brilhante ideia de se opor ao tempo ao invés de segui-lo. Passou a exibir-se rosa pálido quando o sol brilhava e azul vivo assim que se anunciavam nuvens. Mais do que as escolhas de cor, outra mudança se deu. Já ninguém seguia o galo, nem tão pouco admirava a sua capacidade de antecipação. Antes o criticavam por se opor a cada momento àquilo que todos queriam seguir. O galo meteorológico voltou a sentir-se triste, indeciso – pior, impreciso. Era incapaz de escolher uma cor que reflectisse o seu verdadeiro ser, pois era feito de substância inanimada, oco por dentro.
O galo meteorológico não morreu de desgosto, nem teve outro fim trágico que não fosse este: passou o resto dos seus dias variando de forma confusa e incoerente as cores que conseguia mostrar, por vezes tão indefinidamente que era impossível aos da casa determinarem o tom. A cor foi-se gastando, sem propósito, sem direcção, sem paixão. Um dia, era já nada.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A OVELHA E O LOBO

A OVELHA E O LOBO

“Por favor não me comas”, baliu a ovelha perante a boca escancarada do lobo. O pedido foi atendido, a ovelha urdira um plano, trocando-o pela vida. “Não me comas por favor, e todos os dias terás farta refeição sem que para isso tenhas de correr, perseguir, sem que para isso tenhas de fatigar-te.”, propôs a ovelha. Houve acordo, e nos tempos que se seguiram, dia após dia, a ovelha afastava do rebanho uma companheira. Atrás de uma árvore, misturando-se com a sombra, o Lobo não tinha mais que dar dois ou três passos para enterrar a morte no pescoço da vítima. Uma após outra, todas as ovelhas foram devoradas e o rebanho findou. Sobrou uma, a tal, aquela, a que. E já o lobo salivava de boca aberta quando a ovelha baliu em protesto:”Mas, comes-me a mim que te ajudei?”, ao que o lobo respondeu:”O que é que te faz diferente das outras? Acaso não és tu uma ovelha do mesmo rebanho?”. A ovelha, entre o susto e a ofensa baliu:”Mas, a mim que matei por ti?”. Mordendo o primeiro pedaço, o lobo impaciente rematou:”Não foi por mim que mataste, mas por ti”.

domingo, 21 de junho de 2009

O COELHO E A RAPOSA

O COELHO E A RAPOSA

Havia um coelho confiante que vivia no tronco de uma árvore. Corria veloz como o vento, os olhos bem abertos, de ouvidos à escuta. Certo dia, uma raposa aproximou-se da toca e, assim como quem faz conversa disse: “Sr. Coelho, ouço dizer pelo bosque que não há outro tão veloz, que o senhor é o único coelho por quem nenhum predador afiará o dente”. O coelho levantou a orelha esquerda, depois a direita, espreitou com o olho esquerdo, depois com o direito, e pôs a cabeça de fora da toca: “Ora viva Sr. Raposo, é bem verdade o que ouviste dizer. Sou o mais rápido, o mais veloz dos coelhos e nenhuma raposa ou lobo me há-de comer um dia”. E enquanto pronunciava estas palavras fechava os olhos de satisfação. Foi só preciso um momento para que a raposa lhe abocanhasse a cabeça.
Do coelho resta a história, da raposa a memória, na floresta tudo é calmo, cada qual na sua toca.

terça-feira, 2 de junho de 2009

A CASA

A CASA

No cimo do telhado estava o galo, a cantar todas as manhãs. Ao primeiro canto acordava o cão de guarda. Não havia ladrão que entrasse sem levar uma mordidela nos fundilhos. Despertava as galinhas que punham os ovos do pequeno-almoço. e esticando-se-se no tapete, também o gato abria os olhos, e logo se punha a apurar a mestria de apanhar ratos. Era uma casa farta, onde tudo acontecia em boa hora, uma casa segura, tranquila. Enfim, talvez não feliz, pelo menos segundo o dono. Que a vida estava cara era queixa constante a todas as refeições, à hora da deita e ao amanhecer. Cada ovo que comia azedava com preço do milho que dava às galinhas. Ao jantar, maldizia os ossos que atirava ao cão, e o peixe que comia o gato Sempre que ouvia cocororó lamentava a despesa que lhe dava o galo. Foi então que teve a ideia de diminuir os custos e aumentar o produto. Cortou para metade a ração e ordenou às galinhas que pusessem o dobro dos ovos. Teve ainda o cuidado de pedir ao galo que cantasse mais afinado, lembrando-lhe o preço a que estava o milho. Ao cão retirou os ossos e atirou-lhe as cascas da fruta, ao gato deixou as espinhas. Quando o galo morreu de fome e doença, comprou um despertador. Quando o gato fugiu em busca de melhores paragens, espalhou ratoeiras com bolor a fazer de queijo. Quando as galinhas sucumbiram à exaustão vendeu-as no mercado. Quando o cão ficou fraco demais para defender a casa chamou-o de preguiçoso e abandonou-o numa ruela escura. Não houve rato que se chegasse às ratoeiras, antes preferiram os víveres da despensa. Ovos, deixou de comê-los ao pequeno-almoço. Quando a pilha do despertador acabou adormeceu e perdeu o emprego. Ficou-se, agarrado ao pouco que lhe restou da venda das galinhas. Mas também isso lhe foi retirado quando os ladrões lhe entraram em casa. O cão já lá não estava.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

O REI DA SELVA

O REI DA SELVA

Há muito tempo, certo dia de Estio, no centro da savana Africana, viveu um rei. A corte animal bendisse o seu nascimento, abençoou a cria de Sua Majestade, predisse um futuro brilhante. O futuro rei, de juba incandescente, cresceu com os dons de beleza, voz, pujança. Apesar de abençoado em tudo o que podia desejar, a sua alma era atormentada pelo medo. Temia o dia em que viria a reinar, em que a corte gritaria: O REI MORREU, VIVA O REI! Mas o futuro incerto faz-se sempre acompanhar pela certeza do Tempo, e o dia temido chegou, nem cedo de mais, nem tarde de mais, e a corte gritou o grito esperado. A sua juba fez-se coroa, a pata ergueu-se para comandar. No acto, contudo, as garras retraíram-se, tremeu-lhe o membro, o rugido desfez-se, e assim ficou, desnudado pelos olhos dos outros animais que esperavam liderança como quem espera a manhã que vem iluminar a noite. Ora um sapo, de ampla voz, que vivia num charco ali próximo, abeirou-se do rei e coaxou algo que mais pareceu um arroto: Se me permite Vossa Majestade, bem vejo que a voz lhe treme quando quer falar, que os vossos desejos se dissolvem na língua, que tendes dificuldade em mostrar o vosso coração de líder. Deixai que fale por vós como Aarão falou as vontades de Moisés. Toda a juba do rei se iluminou, os dentes mostraram-se num sorriso, e logo o sapo se empoleirou entre as cerdas cor de fogo. Foi assim que o rei da selva começou a reinar pela voz do sapo. Pela voz, só? Pela vontade, também. O sapo reinou caprichos, fez das competências de um líder mesquinhez, alimentou-se de reais repastos. A corte, desorientada, em breve se desmantelou, como um castelo de areia há muito sem água. O rei da selva era agora rei de nada, nem mesmo de si próprio.

sábado, 2 de maio de 2009

VENENO DE RATO

VENENO DE RATO
O rato envenenado caiu redondo, as quatro patas viradas para o céu. As costas já não sentiam o frio do chão. Ficou assim, o seu corpo minúsculo apodrecendo no azulejo preto e branco, desfazendo-se com lentidão, até já pouco restar da sua fisionomia de rato. Veio o dono da casa a descobri-lo por baixo do frigorífico. Apanhou-o com a pá e deitou-o no lixo, um rato entre os milhares, milhões, biliões de ratos mortos desde o princípio do mundo. O precioso veneno, sempre a jeito no armário das bolachas, matava com regularidade. O homem espreitou a lata e sorriu ao seu conteúdo. O dia seguiu-se em silêncio de nojo. Os pássaros abafaram o pio perante a passagem da foice, não fosse algum garoto usar a fisga. Os cães não ladraram, a esses a morte cheira, mesmo distante. Os gatos cederam ao sono, sem ratos a quem perseguir. Chegou a noite e uma chiadeira agitou o silêncio propício à janta. O homem entrou na cozinha e sentou-se em frente ao prato. Mergulhou a colher no tacho e resmungou ‘Parece-me que ainda há muitos para matar’. A chiadeira aumentou parecendo gente apupando na arena. Irritado, o homem sorveu da colher, enquanto mirava a lata de raticida. Os olhos arregalaram-se perante a tampa aberta, as unhas cravaram-se na toalha de mesa. Foi a cadeira a primeira a ceder sob o seu peso morto. Caiu de costas, arrastando a louça, as mãos e as pernas buscando o céu. Assim ficou, o seu corpo apodrecendo, desfazendo-se com lentidão até pouco restar da fisionomia humana. O silêncio voltou. Não só na sua casa, também nas outras, nas ruas, no mundo inteiro.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

A LAGARTA BICÉFALA

A LAGARTA BICÉFALA

Havia em certo jardim uma lagarta tão longa que todos os animais abriam a boca de espanto à sua passagem. Era tão comprida que ao estender-se bem estendida, com a cabeça para um lado e a cauda para o outro entrava e saia simultaneamente do jardim que habitava. Mais do que o seu comprimento, que por si só já era de admirar, a estranheza da lagarta residia no facto de ter duas cabeças. Ou seja, quando há pouco a descrevi como tendo cabeça e cauda em cada uma das suas pontas, a verdade é que a cauda era também a cabeça. Ora se diz o ditado que duas cabeças pensam melhor do que uma, tal não era o caso da lagarta bicéfala. As duas cabeças nunca estavam de acordo. Se uma queria caminhar, a outra queria descansar. Se uma queria comer, a outra queria dormir. Se uma sonhava vir a ser borboleta, a outra desejava ser lagarta para sempre.
O mocho julgou ter a solução para o problema. Corte-se ao meio a lagarta, disse, e fica uma cabeça para cada lado. Mas como cada cabeça tinha o seu pensar, uma achou boa a solução e a outra achou mal. Foi-se a votos. A lagarta contou os anéis de cada metade do seu corpo, à metade com mais anéis caberia a decisão. Não sabia, porém, que duas metades de lagarta possuem o mesmo número de anéis. Se uma ficou satisfeita com o empate, e outra ficou de mau humor. Puseram-se a discutir, numa daquelas discussões com tantas palavras quanto o número de anéis que tinham contado. Nisto, aproximou-se o corvo, que de tanto observar a lagarta achou que se abrisse bem o bico e abocanhasse uma das cabeças, conseguia engoli-la toda, enrolando-a bem enrolada dentro do seu estômago. Foi a primeira vez que as duas metades concordaram. Nenhuma queria morrer. Não tiveram tempo de manifestar o seu acordo, porque o corvo abocanhou uma ponta e terminou na outra após longo repasto. No jardim soou um arroto, e um suspiro de satisfação.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

A MORTE DA SARDANISCA

A MORTE DA SARDANISCA

Tempo de Estio. A vida é fácil, doce, melancólica como o Sol que desce. A pedra aquece até queimar os dedos, dormentes, que sentem vivo o minério. A pele rasga-se, abre-se, dá-se ao ar que penetra morno. Escutam os ouvidos para além do próximo. Toda a terra murmura em luxúria. Que odor emana das flores, tão forte agora, tão discreto outrora…
A sardanisca estica o pescoço, levanta a cabeça ao céu de um azul tão denso como um tecto. O espaço sideral desapareceu, engolido pela luz. Levanta a cabeça, os sentidos a palpitar, mantendo-se imóvel como se ela própria se tivesse tornado parte de um quadro estagnado. As abelhas colhem pólen, frenéticas, as formigas formam uma fila interminável de migalhas. As outras sardaniscas escondem-se à mais leve vibração. Encontram orifícios frescos no muro de pedra, multiplicando-se em afazeres diários. Ela não. Os dedinhos esticados, já tão quente a pele cinzenta ainda por manchar. Aquieta-se porque assim lho pede o Sol. As joaninhas pintalgam as flores, vorazes de pulgões. As lagartas escorrem das folhas que comem. Aquieta-se a sardanisca porque assim lho pede o Verão, com a cauda em curva perfeita contra a pedra que arde. Toda tocada pelo ar, sente prazer na imobilidade e no ópio das flores. Os pardais cantam ósculos, dançam, devoram. Os ratos juntam relíquias, enchem as tocas. As borboletas dão asas às flores. A sardanisca aquieta-se porque assim lho pede a Vida. E o doce perfume de Estio passa, também ele voraz do tempo que engole. Caem folhas de Outono em chamas, cobrem o mundo de ontem. Na pedra fria aos primeiros raios da manhã, a sardanisca aquieta-se porque assim lho pede a Morte.

quarta-feira, 18 de março de 2009

A ANDORINHA E O TEMPO

A ANDORINHA E O TEMPO

Certo dia, chegando a Primavera, duas andorinhas pousaram no telhado de um estábulo e aí fizeram o seu ninho. Dentro do ninho a Dona Andorinha depositou três ovos. De dentro dos ovos estavam quase a nascer três filhotes. A ansiedade dos futuros papás foi bem recompensada na manhã em que três pequenos bicos partiram as cascas. Os filhotes começaram logo a engordar com as minhocas deliciosas que os papás achavam e enfiavam pelas três goelas escancaradas. Já tinham penas sedosas, apropriadas ao voo rápido das andorinhas. Assim, quase sem o Senhor Tempo se aperceber, dois dos três filhotes aprenderam a voar. Saíram do ninho e dançaram no céu azul, fazendo rodopios acrobáticos. Apenas um ficou no ninho. A Dona Andorinha veio chamar uma, duas vezes. O filhote respondia, cheio de orgulho e segurança:
─ Ora, Senhora Minha Mãe, ainda as minhas penas acabaram de crescer e já me querem fora do ninho! Não sou como meus irmãos, não senhor! Uns estouvados, irresponsáveis, que ainda mal sabendo quem são, já se põem nessas correrias. Tenho tempo, e quando chegar a minha vez voarei mais alto e mais longe que todos os da minha espécie.
A Dona Andorinha não insistiu, tinha dois outros filhotes sedentos de aprender. Ainda assim, todos os dias levava ao ninho mais minhocas e insectos que qualquer outro passarinho se podia gabar de comer. Passou a Primavera, passou o Verão. Seus irmãos eram já mestres na arte da aviação. Ele, não. Pressa era palavra proibida, inimiga da perfeição. Estava-se muito bem no ninho cheiroso, a barriga cheia com a comidinha da mamã. Mas, de novo o Senhor Tempo fez das suas, e chegou o dia em que Dona Andorinha e seu marido anunciaram ser altura de viajar para África. A grande preocupação era o filhote reticente em aprender o que os seus irmãos já dominavam. O Inverno seria demasiado rigoroso para que pudessem aguentá-lo protegidos apenas pelo ninho. Porém, isso significava abandonar o terceiro filhote. Dona Andorinha teve de escolher. E escolheu. Entre salvar dois ou nenhum, não pensou muito.
─ Vamos para África onde a terra é quente e há fartura. Aqui tudo morre durante o Inverno. E tu, terceiro filhote, terás a árdua tarefa de aprender a voar sozinho e em pouco tempo. Poderás, talvez, procurar um sítio quente, e tentar sobreviver com os insectos que te caírem no bico.
O filhote empoleirou-se no topo do seu orgulho e abriu o bico para responder:
─ Vão-se embora, pais ingratos! Vão-se embora, irmãos estroinas. Hão-de ser muito felizes em África, não haja dúvida. Eu cá ficarei, e tomarei em mãos a árdua tarefa de sobreviver, já que ninguém se preocupa com isso. Não me dão nem uma pequena ajuda!
Dona Andorinha e seu marido passaram o resto do dia a encher-lhe o ninho de minhocas e insectos para que pudesse começar a vida com mais essa vantagem. No dia seguinte partiram resolutos, mas com o coração pesado. O filhote ficou no ninho, sozinho, ouvindo o muu da vaca e hi ho do burro. Começava a ter algum frio porque o Senhor Vento passava, agora, com alguma pressa. Em pouco tempo devorou toda a comida que lhe deixara a mamã. Lamentava-se para quem quisesse ouvir:
─ Ai a minha sorte! Ninguém me ajuda, a mim que não sei voar nem fui ensinado.
Ouvindo os lamentos, a vaca pôs a cabeça de fora de fora do estábulo, olhou para cima, e mugiu:
─ Deves ser tu a quem a Dona Andorinha e o seu marido levaram comida o Verão inteiro. Por que é que não aprendeste a voar como os teus irmão? Falta-te alguma asa? Não tens penas?
Também ele, o terceiro filhote, pôs a cabeça de fora e muito empertigado piou a resposta:
─ E pensas tu que aprender a voar na perfeição é coisa fácil? Ninguém me dá tempo para fazer as coisas como devem ser feitas. Nem o Senhor Tempo teve consideração por mim. Se me tivessem dado oportunidades justas, seria agora bem mais expedito que os parvos dos meus dois irmãos!
A vaca calou-se e continuou a mastigar palha. O Inverno foi longo e rigoroso como anunciara a Dona Andorinha. Mas quando chegou a Primavera brotaram flores em todos os cantos. O Sol apaziguou o seu amuo e já brilhava com o encanto de antes. A Dona Andorinha voltou de África, acompanhada pela sua família feliz. Encontraram o antigo ninho caído no chão, derrubado pelo Senhor Vento numa das suas fúrias. Quanto ao terceiro filhote, foi bem aproveitado na barriga de um gato faminto.

terça-feira, 3 de março de 2009

A ARANHA E O REI

A ARANHA E O REI

No sótão de uma casa pobre vivia uma aranha. Dia a dia remendava a sua teia, ansiosa por caçar alguma mosca. Não tinha muitos motivos de queixa, porque, de vez em quando, caía na rede um mosquito incauto, e logo havia repasto. Não obstante, a aranha lamentava-se todos os dias. Tecia sem parar, e pela carapaça negra deslizavam-lhe lágrimas amargas.
-- Ai, tanto talento desperdiçado a caçar moscas e mosquitos! Uma tecelã como eu merecia viver num palácio e tecer as roupas de um rei.
Ouvindo os seus lamentos, um mosquito que tinha ficado preso, esperando confundir a aranha e escapar com vida, resolveu zumbir:
-- Não sei a causa de tantos lamentos. O teu sonho não é assim tão difícil de realizar. Tens patas, tens saúde, e ouvi dizer que possuis, como todas as tuas irmãs, um óptimo sentido de orientação. Abandona esta casa, que de tão velha cheira a mofo, e vai até ao palácio do rei. Decerto serás bem recebida.
A aranha achou sábias as palavras que acabara de ouvir, e nesse mesmo instante resolveu pôr-se a caminho. Tinha fome e queria prevenir-se para a longa viagem, logo comeu o mosquito que em tão boa hora a aconselhara. Caminhou com as suas oito patas até à janela, teceu um fio até à rua, avançou ao longo das paredes das casas, dos muros, dos ramos das árvores, e até dos pés dos transeuntes, chegou ao palácio, subiu as escadas de mármore, atravessou os salões entre os guinchos das damas e empoleirou-se no braço do trono real. O rei, enojado, descalçou um sapato e preparava-se para a matar quando a aranha, gritando a plenos pulmões para se fazer ouvir, deteve o gesto:
-- Vossa Majestade honra-me, permitindo a minha presença diante do Vosso real nariz. Foi o desejo de vos apresentar uma proposta irrecusável que me trouxe por árduos caminhos. Se ouvirdes o que tenho a dizer, decerto que não passará pelos Vossos olhos a tristeza do arrependimento.
O rei achou graça à prosápia da aranha e dispôs-se a ouvir. E ela, esticando as patas para parecer mais alta, continuou:
-- Venho de longínquos países, de terras exóticas. Trabalhei para outros reis tão poderosos como Vossa Majestade. O meu ofício? Tecer os mais belos fios, feitos de autêntico cristal, com os quais devem ser bordadas as roupas reais. Se Vossa Majestade permitir, bordarei todo um novo guarda-roupa que fará de vós a inveja do mundo.
O rei, apesar de possuir qualidades de grande monarca, era muitas vezes picado pelo bicho da vaidade. O seu rosto desceu e subiu num longo sim e perguntou:
-- E que queres em troca?
Tão inchada de orgulho estava a aranha, que até a voz lhe tremeu:
-- Oh, Vossa Majestade! O meu trabalho será a verdadeira recompensa. Apenas peço que, de vez em quando, me arranjem um mosquito aqui, uma mosca ali, para não perder tempo a sobreviver.
-- Feito – respondeu o rei.
Toda ela, nas suas oito patas e carapaça luzidia, emanava felicidade. Dia e noite tecia fios que não eram diferentes dos que usava para apanhar moscas, e a todo o momento pedia ao rei que viesse fazer provas.
Certa noite o rei, atendendo a mais um chamado, entrou cansado do dia de trabalho e na penumbra não viu que a tecelã se empoleirara no assento de uma cadeira para melhor o receber. Soltou um suspiro e escolheu precisamente esse sítio para se sentar. Termina assim a história da aranha que por tanto querer ser uma real tecelã, acabou esmagada debaixo de um real “sim senhor”.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O REI DE GAL



O REI DE GAL

Era gordo o monarca que se sentava no trono de Gal. O povo queixava-se de fome, ao que o rei respondia “É preciso comer menos para que o pouco que há chegue para todos”. Dia após dia, arredondava a barriga com tanta guloseima. O que não comia atirava aos cães, o que os cães não comessem saciava os ratos. O apetite crescia-lhe, a fome do povo crescia.
Chegou o dia em que teve uma tamanha indigestão. Quando o Doutor lhe recomendou dieta o rei proclamou: “Façamos todos dieta, comer pouco faz bem à saúde”. Decretou, ainda, que toda a comida que não conseguisse devorar fosse atirada aos chacais, às hienas, às mulas, aos burros, aos ratos, aos abutres até!, enfim, a toda a sua corte.
O bucho do rei curou-se e a tal vitória respondeu: “Curou-se o corpo, que agora se cure a alma. Afinal, a minha felicidade é reinar. Que se organize um cortejo, que se reúnam as gentes de Gal para festejar a minha saúde”.
Fez-se o cortejo, mas gentes de Gal não havia. O povo tinha morrido de fome.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

MOSCA MORTA

MOSCA MORTA


A mosca entra pela porta esquecida. Dá três voltas à sala e zumbe, encurralada. Pobre sentido de orientação, o seu. Incapaz de encontrar o caminho de volta, a mosca descansa no parapeito de uma janela. O Sol aquece-a e, apesar de ver folhas pelo ar, não sente o vento. Conforta-se por um instante, esquecendo que é prisioneira. E então, eis que se apercebe de que o que vê (o Sol, as folhas, o vento) é nada menos do que a liberdade, o exterior. A sua vista de mosca fixa-se numa flor amarela, uma simples flor amarela entre tantas outras flores amarelas. O seu desejo faz-se voo e embate contra a transparência do vidro. Tenta de novo uma, duas, três, quatro vezes, toda ela vontade e determinação. Uma voz humana abre a vidraça contra a qual lutava. “Vai, mosca, sai!”, empurra a voz que tem forma de espanador do pó. Mas a mosca não quer voar para o lado e sim em frente até à sua flor. “Não é a liberdade que queres, mosca?”, o espanador rodopia, tentando orientá-la. Mas a mosca não quer seguir a voz que a irrita e a desvia do seu desejo. Não vê que agora não mais a orienta e que se abate sobre a sua carapaça de mosca, esmagando-a contra o vidro. “Mosca burra”, diz o espanador.